Certa feita, fui consultado por uma doméstica que trabalhava na casa de uns parentes. Aos prantos, M. contou-me sua pungente história de mãe, cujo maior traço certamente era uma enorme culpa, sentimento inevitável que lhe transfixava a alma e se associava à conduta do seu único filho. Culpa que nem os rituais religiosos e seus penosos exercícios de contrição conseguiam elidir. Seu rebento, com 18 anos recém completados, ingressou no sistema prisional após anos de desvios de conduta que motivaram internações provisórias e tentativas frustrantes de interromper uma escalada de delitos. M. lastimava as vidas ceifadas por S., por ocasião de uma disputa de gangues. Lamentava não ter conseguido formar uma família, arranjar um bom homem que pudesse servir de pai ou modelo masculino para S.
Culpava-se pela própria pobreza de migrante rural que a encarcerara, e o seu filho, em meio hostil e degradante. Responsabilizava-se pela impossibilidade de acompanhar de perto o desenvolvimento de S., controlar suas notas, seus impulsos, seus amigos, suas saídas. Ao fim, culpava-se não só pela própria existência, mas por ter tido S.
Na época, chocou-me o paradoxo existencial da mãe culpada e da arrependida por haver permitido S. escapar à sanha de uma história de abortamentos. Achei que só uma grande dor poderia abrigar tamanho absurdo. Uma dor passível de toldar o raciocínio, a lógica, o bom senso, o juízo. Dor de mãe. No entanto, hoje tenho dúvidas se a lancinante dor de M. não teria o lastro racional de apenas uma aparente contradição. Estranhamente, o que me fez lembrar e refletir no paradoxal discurso de M. foi um estudo do economista Steven Levitt sobre a criminalidade.
Afeito a temas inusitados que destroem velhos paradigmas e lançam uma nova luz a questões do nosso cotidiano, não à toa que Levitt é atualmente considerado o mais controvertido e genial dos jovens economistas americanos, estrela do departamento de Economia da Universidade de Chicago. Atendo-se ao caso de M., Levitt muito provavelmente diria que sua conclusão paradoxal escapou dos ditames da sabedoria convencional ou do senso comum em função da dolorosa experiência a que foi exposta. Sim, pois segundo o seu mais controvertido estudo, a legalização do aborto nos EUA foi um dos maiores fatores responsáveis pela maciça queda da criminalidade a partir dos anos 90 naquele país.
A sentença da Suprema Corte no processo Roe versus Wade (1973) sinalizou que as mulheres que não desejam ter filhos geralmente têm bons motivos que as fazem crer que são incapazes de oferecer um lar ajustado à criação de uma criança saudável. Tais motivos, que variam de ter um mau casamento, ser mãe solteira, dependente de drogas, pobre demais, infeliz demais, jovem demais ou pouco instruída, sugerem danos iminentes na saúde física e emocional dos envolvidos, afora o problema de “fazer nascer uma criança em uma família já incapaz, em termos psicológicos e outros, de cuidar dela”.
Independentemente da posição que se assuma frente ao aborto, os estudos mostram que a infância pobre em lar de genitor solteiro está entre os mais fortes determinantes de um futuro criminoso, ao lado de outros fatores como a baixa instrução materna e o fato de ser filho de mãe adolescente. Tais aspectos se encaixam no perfil das mulheres americanas que mais se utilizaram da decisão do caso Roe versus Wade. Levitt demonstrou que no início dos anos 90, quando a primeira geração de crianças nascidas após a legalização do aborto chegava à adolescência, sabidamente a fase em que os jovens do sexo masculino atingem o auge criminoso, o índice de criminalidade começou a despencar.
A polêmica em torno da legalização do aborto, entre nós delicadíssima e sujeita a mal-entendidos como o que recentemente envolveu o atual ministro da Saúde, há que considerar que o mundo real, objeto da economia e de outras ciências, apresenta-se muitas vezes independente do mundo ideal, pautado pela moralidade. Daí ser bastante difícil dissociar os próprios escrúpulos e a crença em dogmas de resultados de estudos científicos que colidem com a sabedoria convencional e nos escandalizam, mas que, nem por isso, devemos ignorá-los. É chocante constatar que M., com sua precária instrução e infelicidade abismal, intuitivamente soube, como Levitt e suas complexas correlações estatísticas, que “não é preciso, porém, ser contra o aborto, do ponto de vista moral ou religioso, para perder o prumo diante da noção de que um sofrimento pessoal possa ser convertido em satisfação coletiva”.
Humanidade cruel – permite que a sociedade tire proveito do sofrimento de tantas mulheres que, não fosse a realidade de desigualdades e carências sociais, não interromperiam a gestação dos filhos. Valho-me da sabedoria de Sêneca: “Cometeu o crime quem dele recebeu benefícios”.
Diário de Natal, 16.05.2007