Intenções, quando descontextualizadas e separadas pela linha do tempo, costumam projetar resultados anômalos. Tal constatação se amolda ao foro especial por prerrogativa de função, compreensivelmente inscrito na Constituição de 1988 ao lado de outros privilégios – imunidades processual, prisional e probatória e que abrangem a inviolabilidade civil e penal, entre outras -, numa época em que o país ainda estava a dar os primeiros passos de sua reconstrução democrática e ainda necessitava se precaver contra os perigos de eventual retrocesso autoritário ou de investidas antidemocráticas.
A prerrogativa resiste ao tempo e se amolda às conveniências sociopolíticas de cada época. Nos seus primórdios, na Grécia antiga, tribunais especiais julgavam senadores e magistrados. Na Idade Média, Roma julgava de acordo com a classe social, mediante o princípio do julgamento pelos pares. Na era moderna, as ordenações portuguesas adotaram regras que diferenciavam o julgamento e a punição de certas categorias.
No Brasil, introduzido em seu primeiro formato na Constituição Imperial de 1824, o foro especial de julgamento, restrito a casos excepcionais, foi reinserido na primeira Constituição republicana (1891) e nas subsequentes com variações. Mas foi na Constituição de 1988, a mais democrática de todas, que o instituto foi ampliado a inúmeras autoridades públicas dos três poderes.
Hoje, o excessivamente privilegiado foro das nossas autoridades, especialmente governantes e representantes, tem carreado mais desvantagens e desequilíbrios que serventias à sociedade como um todo. O instituto, que não deve ser confundido com as imunidades dos parlamentares, permite ao congressista ser processado criminalmente, durante o mandato, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja competência também abrange os delitos eleitorais e até as contravenções penais, o mesmo se aplicando a presidentes, vices e ministros. Governadores e desembargadores recorrem em terceira instância, ao passo que prefeitos, deputados estaduais e juízes recorrem em segunda.
No contexto atual, assaz diverso daquele que justificou a renovação da prerrogativa de foro, os riscos de um retrocesso autoritário são irrelevantes, de modo que para muitos o instituto não apenas se tornou regra caduca, mas privilégio injustificável, desmedido e eventualmente acumpliciado aos interesses e práticas ilícitas de nossos políticos, quando não um obstáculo para um andamento processual mais célere e a efetividade da punição de delitos, em especial os relacionados à corrupção.
Diante dos reiterados combates em curso às práticas de corrupção no país, é fato que o instituto também se transformou em estorvo para um Judiciário superior sobrecarregado de processos, agora debruçado em julgamentos de crimes comuns praticados por políticos e outras autoridades, embora nem todos os tribunais possuam estrutura adequada para receber esses casos. Magistrados dos tribunais superiores e da mais alta Corte parecem estar de acordo em relação à questão.
O juiz federal Sérgio Moro, por ocasião da audiência pública na Câmara dos Deputados para debater as 10 medidas contra a corrupção, demonstrou comungar da mesma ideia: “O foro privilegiado fere a ideia básica da democracia de que todos devem ser tratados como iguais”.
Mas há quem perceba o debate sobre a extinção do foro uma questão maniqueísta e hipócrita, caso do ministro Gilmar Mendes. Para o constitucionalista, “o problema é conjuntural”, pois se é certo que a Justiça precisa melhorar, também é certo que “vem se aperfeiçoando a olhos vistos”. E observa que “quem argumenta com o uso de chicanas para protelar, nos tribunais, não pode imaginar que na primeira instância deixariam de acontecer embustes”, residindo um perigo maior que a procrastinação na “rede intrigas, da pequena política enveredar comarcas, adensar o jogo eleitoral e conspurcar de vez a nossa democracia”.
Não custa enfatizar que as normas, quanto mais legítimas, mais devem ser justificáveis, historicamente situáveis, variáveis no tempo e no espaço, e ter sua origem na sociedade. Mas a Constituição não pode estar ao sabor das circunstâncias e das maiorias ocasionais, pois há muito se sabe que a pressa desinformada e a submissão açodada à opinião pública não rendem bons frutos. A adoção de novas regras limitantes do foro especial por prerrogativa de função não pode, portanto, prescindir do amplo debate e da participação cívica.
Erick Wilson Pereira, Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP