O judiciário como vidraça


Temos assistido, não sem um certo desconforto, críticas provenientes de setores importantes da sociedade civil contra decisões emanadas de magistrados. Embora também reflitam um estado de inconformismo relativo às decisões judiciais, tais críticas passaram a desbordar dos limites mínimos de urbanidade e cortesia, aproximando-se da afronta, da ofensa moral. Lamentavelmente, na maioria das vezes, não são suficientes para suscitar reações de grupos sociais mais organizados, incluindo a própria magistratura.

Não há como evitar questionamentos acerca dos motivos deste fenômeno que está a se repetir e a contribuir para uma perturbadora onda de descrédito do Judiciário. Onda que escachoa nos nossos juízes acusados de corporativismo, nepotismo, vinculações espúrias com os outros poderes, parcialidade nas decisões, baixa produtividade e desconhecimento da real função social da magistratura, quando, também, não os colhem as pechas de imaturos, autoritários, presunçosos.

Recentemente, relatório de Leandro Despouy, da Comissão de Direitos Humanos da ONU para a independência de juízes e advogados, criticou a Justiça brasileira pela existência de vínculo entre juízes e os poderes políticos e econômicos locais; altos índices de impunidade; acesso limitado à população carente; morosidade crônica; nepotismo; falta de transparência nos mecanismos que regulam o seu funcionamento (concursos, promoções, nomeações); ausência de prioridade na solução de crimes cometidos contra ambientalistas, trabalhadores rurais, mulheres e crianças, entre outros aspectos. Apesar de não constar qualquer novidade no relatório, pela primeira vez, ousou-se expor, de forma autorizada e visceral, chagas do Judiciário que refletem uma sociedade desigual e discriminatória, já conhecida por tantos que militam ou buscam seu quinhão de justiça.

Apesar deste quadro, pesquisas demonstram que o Judiciário ainda é o Poder que mais goza de credibilidade entre nós. Talvez seja hora dele próprio abrir os olhos para suas próprias falhas e carências, sem temer assumir posturas claras e firmes em face das mesmas. E, também, sem se fazer temer pelos críticos, em razão do próprio poder. Afinal, por que não assumir que, a exemplo de outros profissionais, os juízes são falíveis, influenciáveis e corruptíveis, e não necessariamente nesta ordem? E que, apesar disto, o Judiciário pode dar exemplos cortando a própria carne, de forma a ser merecedor desta credibilidade? Afinal, nenhuma instituição humana, naturalmente sujeita a erros e falhas, pode ser julgada por atos isolados.

O cumprimento da função social do Judiciário exige exercícios de autocrítica e maior participação no contexto dialógico com os outros setores da sociedade. Para isso, precisa este Poder dar mostras de maturidade e humildade, a não poder confundir isenção com indiferença, tolerância e prudência com pusilanimidade, autoritarismo com poder, consciência social com regalias de classe. Escolhas éticas que implicam partilha e propagação no tecido social; afirmação e coragem, e que remetem à prerrogativa da independência – garantia fundamental da cidadania. Daí, nossos juízes precisam ter olhos bem abertos, a exemplo da deusa Themis, a instalada no Palácio da Paz, em Haia, de forma a não permitir que lhes toldem os limites da liberdade profissional, da atuação imparcial, sem que isso importe indiferença em face da miséria social e moral que nos circunda. Mais que isso, precisam ter a consciência de que detém um poder terrível – temível, enorme. Aquele apontado pela argúcia do grande Calamandrei, a reputar que“o Estado sabe que confia aos juízes um poder terrível que mal empregado, pode fazer que a injustiça se torne justa, obrigar a majestade da lei a se fazer paladina do erro e imprimir indelevelmente na cândida inocência a mácula sanguínea que a tornará para sempre indistinta do delito”. 

(Publicado no Correio Brasiliense, Brasília/DF)