Criminalidade ambígua


A onipresença da criminalidade, fenômeno natural que abarca todos os indivíduos independentemente de aparência, cor da pele, grau de instrução ou status social, em determinadas épocas transpõe limites humanamente inaceitáveis, de forma a se concluir que determinadas sociedades se acham enfermas.

Entre nós, não mais bastam os crimes eventuais, os cometidos contra minorias e parcelas da população socialmente mais frágeis, a violência doméstica que grassa e expõe as feridas do desequilíbrio das relações de poder, os casos mais recentes e que mobilizam a curiosidade, a mídia e o aparato policial. Obrigamo-nos a conviver com a violência de cada dia, banalizada e degradada, e o seu medo, que espreita em cada esquina, mina e entorpece os sentidos, fragmenta valores, malsina o destino de todos, não apenas o de uma maioria que não tem acesso à mídia, ao poder e aos sofisticados grilhões com que as classes mais favorecidas se atam nos seus condomínios. 

Como a morte, tendemos a pensar a criminalidade como fenômeno que atinge apenas os outros. Até que um dia ela bate a nossa porta, ou extravasa crueldade do contorno humano, a ponto do nosso torpor ser temporariamente interrompido. Aí, fazem-se mais leis para aplacar o ânimo da população maniqueísta, de forma que o Estado possa demonstrar que efetivamente combate o crime. Leis e sanções feitas nesse sabor, excessivamente severas, e que convivem com leis extremamente benevolentes. Longe de inibir delitos, tal processo instalado no bojo de graves desigualdades sociais caminha pari passu com um aumento da população carcerária, o surgimento de novas facções criminosas, a dificuldade de se implementar programas de recuperação dos condenados, a impunidade, entre outras mazelas. 

A ausência de autoridade pela falência do Poder Público e dos meios legais, e a impunidade que daí resulta, provoca-nos uma percepção alterada da realidade, a cada dia mais ambígua, socialmente intolerante em relação aos pobres – indubitavelmente os que mais sofrem com a violência, ou que criminaliza as vítimas instaladas no topo da pirâmide social por andarem em carros de luxo, exibirem adereços caros, vestirem roupas sensuais (vítimas de estupro), divertirem-se em casas de praia, ou simplesmente saírem de suas luxuosas clausuras. Nesse andar, crimes contra o patrimônio, em pequena ou grande escala, por vezes têm sido equiparados a atos de justiça social, de forma que ocupar propriedades privadas, invadir terras produtivas, destruir portas de instituições emblemáticas como o Congresso Nacional, roubar nas paradas de semáforos e assaltar residências, formam um caldo cujo resultado é a desagregação ética que a naturalidade da violência impõe e a distorção da realidade. Uma realidade que, a cada dia, parece passar por um processo de fascistização que ora glamouriza ou justifica a bandidagem, ora aprova a justiça com as próprias mãos. Esquecemo-nos que onde existe justiça social, os limites de tolerância são circunscritos e não existe dubiedade em relação aos papéis, ao certo e ao errado. Só tolera ou ri da violência o filho da dúvida, o alienado, ou simplesmente aquele que se sente seguro. Não pode haver meio termo. No dizer de Anatole France, “os moderados sempre se opõem moderadamente à violência”. 

(Publicado no Diário de Natal em 21.11.2007)