Ao longo da nossa história política, temos assistido a prevalência da individualidade dos candidatos em detrimento dos partidos, e seus efeitos mais visíveis, a exemplo das arbitrárias migrações partidárias, da incessante criação e derrocada de partidos políticos e da manipulação dos princípios partidários, muitas vezes para acomodar interesses de cunho pessoal e eleitoral. Em suma, poderíamos bem qualificar nosso panorama político como modelo de insegurança em face da sua volubilidade, da desqualificação da representatividade outorgada pelo povo e da incompatibilidade com o preceito constitucional da elegibilidade, o qual exige a filiação partidária como condição absoluta.
Nos últimos anos, apesar das freqüentes transferências partidárias fisiológicas, verificadas, sobretudo, no início das legislaturas, muitas a título de barganha de benefícios individuais e a transformar a indecência em fato corriqueiro, as nossas maiores Casas legislativas fecharam os olhos, omitindo-se do enfrentamento de questão relevante à própria moralidade. Questão consentida pela capenga legislação dependente de uma reforma constitucional que transferiria a titularidade do mandato do parlamentar eleito para o partido político. Questão que exigiria, portanto, tipificação legal a ser expressa e devidamente inscrita no ordenamento jurídico. Lamentavelmente, não foi isto que aconteceu.
A tão esperada e morosa reforma política foi surpreendentemente iniciada pelo Judiciário, o qual, a título de “interpretação sistemática” do ordenamento, legislou acerca da fidelidade partidária, agora obrigatória para eleitos para cargos proporcionais e majoritários. Na esteira do vácuo legislativo, os argumentos dos nossos ministros: a “busca da concretude maior da nossa Constituição” e da segurança jurídica; a desqualificação ou renúncia tácita do mandato eletivo pelo abandono do partido; a necessidade de preservação do “elo inafastável” entre o candidato e o partido político; e, uma contabilidade a pretensamente demonstrar que os votos ideológicos nos partidos prevalecem sobre os nominais nas escolhas dos eleitores, entre outros motivos.
Com a própria extensão da regra dos cargos proporcionais para os majoritários, alguns argumentos tecidos pelo TSE já se fragilizam ou se colidem, a exemplo do quociente eleitoral, imprestável, na prática, para as eleições majoritárias. Ademais, o surgimento de novas consultas em face da não elucidação de questões relacionadas e ainda pendentes, como a situação dos suplentes e dos eleitos em coligações, propicia um cenário óbvio e deplorável para nosso sistema político: a cristalização da legislação sobre reforma política pelo Judiciário, o qual certamente receberá aval para novas incursões na formulação de regras, caso o legislativo permaneça na sua inércia.
Assim é, que, apesar da utilidade das decisões do STF e TSE em face do atual quadro de vulnerabilidade do sistema partidário, críticas à judicialização da reforma política têm surgido das mais variadas fontes. De fato, a imposição das novas regras de fidelidade partidária além de criar insegurança jurídica em face da inversão da jurisprudência com efeito retroativo, induz suspeitas gratuitas de parcialidade no Judiciário e enseja embates entre os dois Poderes, a bastar o exemplo de ameaça de proposta de emenda constitucional casuística para anistiar os atuais infiéis. Sobretudo, tal injunção tem o condão de colocar a sociedade à margem de uma reforma política que já nasce com a marca da fragmentação e da ilegitimidade.
Maquiavel já dizia que não há coisa mais difícil, mais perigosa, nem de êxito mais duvidoso, do que o estabelecimento de novas leis. De fato, apesar de necessária, a nova regra terá como inimigos aqueles que se beneficiavam com a antiga, ao passo que será timidamente defendida pelos novos favorecidos. Em face de tal desequilíbrio, de tal fraqueza, periclita o poder daquele que legislou. Mormente, um poder que não detém legitimidade para legislar.
(Publicado no Diário de Natal em 01.11.2007)