‘Good-faith exception’ brasileiro


Medida polêmica, inserida no pacote das dez medidas de combate à corrupção proposto pelo Ministério Público Federal, é a possibilidade de provas apontadas como ilícitas serem validadas pela Justiça mediante comprovação de que foram colhidas de boa-fé. 

A exemplo de outras Cartas democráticas do mundo, a Constituição Federal tem como um dos pilares da garantia do devido processo legal a vedação expressa do uso da prova obtida por meios ilícitos nos processos judiciais (art. 5°, LVI).

Portanto, além de controversa, a medida proposta se prefigura como mais uma das garantias constitucionais a ser relativizada – violada, para quem abomina eufemismos – sob o pretexto de se combater o crime com mais eficácia. Pois não se trata de mera colisão de direito fundamental à privacidade e à intimidade com o direito à segurança da sociedade, mas de violação aos direitos fundamentais do indivíduo atingido pela persecução penal, a destacar o direito do devido processo legal.

Caso acolhida tal medida, a garantia de caráter processual por meio da qual o Estado deve promover as atividades de persecução criminal será desvirtuada e franqueará, no mínimo, a intromissão – pretensamente de boa-fé, bem verdade – na vida privada, na intimidade, no domicílio, no sigilo profissional, na correspondência e nas comunicações, entre outras esferas que terão seus direitos afrontados. A miopia do Estado para investigar será então compensada pelas lentes disformes de um utilitarismo desmedido em que os fins justificam o manejo de meios ilícitos, desde que praticados com boa-fé. 

Natural que se pretenda evitar a repetição de operações malogradas pela nulidade das provas, a exemplo da Satiagraha e da Castelo de Areia, mas não às custas do atropelo à segurança jurídica, às garantias e aos direitos constitucionais, pois não é de hoje que teses processuais são construídas pela defesa com fundamento na alta precariedade das provas colhidas e admitidas pelo próprio sistema. 

Na busca frenética por benefícios que excedam os “custos”, pretende-se aplicar mais uma teoria (good-faith exception) do processo penal norte-americano ao nosso ordenamento jurídico, sem a precedência de um debate aprofundado acerca da propriedade de tal adaptação às nossas peculiaridades jurídicas e socioculturais.  

​Considerando as gritantes diferenças entre o nosso aparelho policial e o dos EUA, não é preciso ser um vidente para prever muitas das intenções que aproveitariam a prova ilícita, com base no princípio da proporcionalidade, sempre que os benefícios “forem maiores do que o potencial efeito preventivo, da decretação da nulidade, sobre o comportamento do Estado em investigações”. Um claro desrespeito a nossa Lei Maior, que na esteira de outras constituições democráticas estabelece a proteção dos direitos individuais no processo.

​Não devemos nos calar quando direitos arduamente conquistados são relativizados, mesmo que de boa-fé, pela sanha punitiva oriunda de parcelas do Estado. A história é pródiga em exemplos nada edificantes de ativismos que fortalecem o Estado e fragilizam o cidadão.

Erick Wilson Pereira, Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP