É possível ser feliz quando se é prostituta? Segundo a nossa torquemadesca bancada religiosa, há motivos suficientes, além da incompatibilidade entre o adjetivo e o substantivo, para justificar a demissão do diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, responsável pela peça publicitária “sou feliz sendo prostituta”.
Segundo o Ministério da Saúde, o texto não atendia o foco da campanha – coincidentemente, em 2 de junho celebra-se o dia da prostituta –, que seria a saúde dessa categoria profissional. E da qual fazem parte o garoto e a garota de programa, o michê, a meretriz, a mulher da vida e o trabalhador do sexo, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações inscrita no site do Ministério do Trabalho e Emprego.
A velha profissão, tão discriminada quanto hipocritamente alentada pela sociedade, foi reconhecida pelo Estado brasileiro em 2002, o que deveria ter facilitado o recolhimento de contribuições previdenciárias pelos seus raros praticantes assumidos, e garantidos os direitos comuns a todos os trabalhadores, a exemplo de aposentadoria e auxílio doença.
Atualmente, tramita mais um projeto de lei, desta feita de autoria do deputado Jean Wyllys, que pretende regulamentar a atividade dos profissionais do sexo. Entre as justificativas, evitar a exploração sexual, inclusive de crianças e adolescentes, reduzir os riscos da atividade, garantir direitos trabalhistas e acesso às políticas públicas, especialmente a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
Mas o que é visto pela esquerda liberal como avanço social e resgate da dignidade para um grupo que sempre viveu à margem da sociedade, por outro lado mobiliza reações de conservadores e ideólogos da esquerda punitiva que, simbolicamente, lembram os tribunais eclesiásticos da Idade Média com suas queimas de feiticeiras em pleno século 21. Max Weber dizia que o puritanismo é o último heroísmo da burguesia, mas também uma máquina de exacerbar a sexualidade, ao tempo em que a recusa.
A afirmação “sou feliz sendo prostituta” afrontou os conceitos das boas consciências que não associam dignidade e felicidade a venalidade sexual, pois esta equivale a desejo equivocado, desrespeito aos códigos sociais, submissão em oposição à liberação feminina, existência para fins de saciar a pulsão urgente e animalesca da sexualidade.
As boas consciências percebem a desonra e a dissolução, não a pessoa. Pensam que a prostituição existe pela imposição de contextos adversos que, uma vez dissipados, facilitam a libertação de suas vítimas – castigadas ou corrigidas. Não é de admirar que nutram expectativas de que o proscrito reivindique ou assuma o sofrimento, use o discurso melancólico do oprimido, exiba o revés e a angústia da sua exclusão. É mais fácil simpatizar com pessoas infelizes. Ser feliz identifica, reafirma e humaniza a exclusão.
Estas hipócritas consciências nem sempre percebem que a compaixão e o humanitarismo solapam a liberdade e a autodeterminação dos proscritos, em oposição à política que privilegia relações dialógicas marcadas pela autonomia e pelo amor-próprio. Deveriam se concentrar mais no marketing da provocação e da saturação, nas performances pélvicas vulgares de Rihanna ou dos funkeiros, nas obscenidades cotidianas que a TV ou as ruas nos exibem para saciar nossa avidez por escândalos e para demonstrar nossa tolerância para com pedófilos, estupradores…
Quem quiser fugir do comércio sexual que o faça, desde que respeitando aqueles que, felizes ou não, o exercem e lutam para desfrutar da igualdade de prerrogativas dos demais trabalhadores.