Em minha última leitura, deparei-me com um escrito pouco difundido de Norberto Bobbio, no qual o teórico reflete sobre a velhice e o significado da vida, acrescenta ensaios e fragmentos biográficos. A honestidade do auto-retrato e os relatos de circunstâncias do desenvolvimento do seu magistério intelectual constituem poderosa lanterna a alumiar não apenas a trajetória de vida do filósofo, mas os espíritos de quantos se debruçarem na leitura de “O tempo da memória: De Senectute e outros escritos autobiográficos”. Paixão avassaladora pela inteligência e estatura moral daquele homem contemplativo, que soube como poucos analisar os homens de ação, na práxis política, sobretudo, aqueles que pensam ser possuidores do monopólio da verdade.
Numa busca incessante para reconstruir a própria identidade e desdramatizar a morte que se avizinhava com a entrada na “quarta idade”, as lembranças e reflexões do Bobbio de 87 anos, eivadas de irônica modéstia e absoluta ausência de autocomiseração, encerram a sabedoria de quem viveu praticamente todo o sombrio século XX, havendo se dedicado à análise de múltiplos temas, como aqueles referentes à política, à cultura, ao direito e às suas intersecções. À luz da teoria política, suas argutas observações da realidade permitem perceber o realista e pessimista pensador, que, no entanto, não prescindiu dos seus ideais e tomadas de posição em face dos acontecimentos políticos que vivenciou.
Talvez o traço maior que norteou suas análises e a própria vida tenha sido o de mediador, no manejo lúcido e rigoroso das dicotomias, no diálogo sempre aberto às mais diversas facções, na tolerância e respeito aos pontos de vista dissonantes dos seus. Costumava dizer que era um homem da dúvida, e o fato de ser relativista não excluía a crença na própria verdade, ainda que deixasse de impô-la por respeito à verdade alheia – “Da observação da irredutibilidade das crenças últimas, extraí a maior lição de minha vida. Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar. E porque estou disposto para as confissões, faço mais uma ainda, talvez supérflua: detesto os fanáticos com todas as minhas forças”.
Seus últimos escritos, na plenitude de uma frutífera e vigorosa quarta idade, com permissões ao seu universo interior, podem ser sintetizados na observação de Celso Lafer, um dos seus mais diletos discípulos, de que os resultados do pensamento, do caráter e do juízo só aumentaram com a idade.
O velho mestre se concedeu, até a última e nona década de sua vida, a coragem de esquadrinhar ou “escavar” a memória, a ousadia de se proclamar laico em um mundo destituído da dimensão da esperança e da falta de sentido de se levantar a questão do sentido da vida, pois que, ao custo de um grande esforço, percebeu que “a vida deve ser vivida no que tem de imediato, como faz a grande maioria dos homens”.
Erick Wilson Pereira, advogado
(Publicado no Diário de Natal de 31.08.2006)