Ícone nacional da verdade vilipendiada e ocultada pelo arbítrio, o jornalista Vladimir Herzog completaria 75 anos no último dia 27. Na noite do dia 24 de outubro de 1975, foi ao encontro dos seus carrascos, peito aberto, crédulo no poder do diálogo. Sequer souberam camuflar a farsa ignominiosa.
Após o auge de crises políticas e institucionais, a verdade — ou o que tomamos por ela — costuma ser a bússola ansiada para corrigir rumos. Em nome deste instrumento, sobrevêm as disputas dos que se postam como suas sentinelas. Campo fértil para erros, atos açodados, mentiras, meias verdades.
No rastro de nossa tradição conciliatória, demorou — mais de 25 anos —, mas finalmente foi criada uma “Comissão da Verdade” para esclarecer os crimes dos anos de ditadura. Ainda assim é criticada quanto a sua extrapolada abrangência, o pouco alcance de seus poderes, a sua duvidosa eficácia. Tornou-se a despretensiosa “Comissão do Possível”. Para alguns, uma mera cortina de fumaça.
É de se prever que cadáveres — corporais e simbólicos — continuarão insepultos. Pois não se resumem à famigerada Lei da Anistia e aos casos notórios de Vlado, Rubens Paiva, Luiz Eduardo Merlino, Davi Capistrano e Luiz Maranhão, entre muitos outros. São os mortos e desaparecidos políticos, inclusive os da repressão à Guerrilha do Araguaia e os enterrados em valas de cemitérios país afora; os torturados e exilados; os indiciados e cassados; os exterminados por esquadrões da morte; os massacrados das Ligas Camponesas e tribos indígenas.
É incontestável que a verdade não é garantia para a aplicação da justiça e o apaziguamento dos ressentimentos. Esclarecer os fatos sob a égide das torturas, detenções arbitrárias, mortes ou desaparecimentos, certamente compromete os acordos feitos com militares em nome da governabilidade. Mas interpor óbices à elucidação da verdade e ao revolvimento dos arquivos — realização posta em dúvida pelo próprio ex-ministro da Defesa Nelson Jobim — pressupõe o descompasso das decisões judiciais brasileiras com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em que anistia e prescrição para crimes de lesa-humanidade são inadmissíveis. Causa danos à história, às políticas de conscientização das novas gerações, aos indispensáveis processos de responsabilização cível e criminal.
Desalentador, especialmente quando sabemos que os vizinhos Argentina — cujo derradeiro exemplo foi a condenação do ex-presidente Videla —, Chile, Peru e Uruguai já tiveram êxito no exorcismo de grande parcela dos fantasmas do arbítrio. Por enquanto, ocorre-me/socorre-me frase lapidar de desencanto: “A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção.” Lacan. Na mente, no fígado ou no coração, a depender do sentimento de cada um.
O mundo, cada vez mais, recusa divisões nítidas em opostos incompatíveis. O que vemos como branco ou preto, quase sempre é matiz pouco sutil do cinza. É o mal e o bem que, assim como a verdade e a mentira, quase nunca andam sozinhos e se postam na contramão do maniqueísmo ingênuo. Daí o desencanto lacaniano que pedimos licença para ampliar. Mas faz-se imperioso um mínimo de resgate da história, de expiação dos fantasmas. E hoje, queremos não apenas a verdade, mas a aplicação da justiça; não só a elucidação dos fatos pela Comissão da Verdade, mas também a punição do opressor fardado ou do executor das atrocidades.
Nas discussões sobre as estratégias de organização e manutenção da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), é comum enfatizarmos o braço militar da conspiração. É mais fácil demonizar o óbvio, dirigir nossos sentimentos de repúdio e ódio contra os carrascos dos subterrâneos que elegeram a truculência dos métodos ilícitos que resultaram nos vergonhosos casos de violência arbitrária, tortura, sequestro, abuso sexual e estupro, homicídio, ocultação de cadáver, abuso de autoridade, prisão arbitrária, extermínio.
Indignamo-nos com a presença entre nós dos torturadores e assassinos do Golpe. Eles ainda marcam presença nas forças armadas, nas delegacias da Polícia Civil, em cargos comissionados. Todos impunes, identificados por suas vítimas ou não, na ativa ou na reserva, gozando de aposentadorias tranquilas. Providencialmente esquecemos o braço civil da ditadura, como se ao militar fosse possível prescindir de conspirações e patrocínios para a instalação de um tão prolongado estado de exceção.
Assim como os torturadores e assassinos de farda, os conluiados representantes do capital e das elites civis circulam bem vivos entre nós, impunes, sem qualquer pedido de desculpas ou ações compensatórias pelos atos pretéritos. A lista é longa: de proeminentes banqueiros fundadores de poderosas instituições bancárias nacionais, até empreiteiros, empresários da área de educação, dirigentes de multinacionais, donos de empresas de comunicação e grandes grupos de mídia. Não é difícil supor o que os levou a tal procedimento.
Ao contrário dos integrantes do braço armado, muitos do braço civil persistem demasiadamente ativos e influentes na vida nacional. Hoje, as estruturas financiadoras/apoiadoras do arbítrio ainda estampam nossos talões de cheques e placas de grandes empreendimentos de infraestrutura país afora, influenciam o nosso cotidiano pelas informações de jornais e de canais de televisão. Adaptaram-se aos novos tempos: são paladinos da moralidade e da liberdade de expressão tão cara ao regime democrático.
Hannah Arendt, no seu relato sobre a banalidade do mal (Eichmann em Jerusalém), observa que muitos criminosos e seus cúmplices, apesar dos argumentos de “consciência tranquila” pela obediência a “ordens superiores” e outras bazófias, apresentam uma normalidade mais apavorante que todas as atrocidades cometidas juntas. Não refletem sobre os próprios atos. Afinal, operavam dentro de uma ordem “legal”. Acresce que, “em condições de terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela ‘poderia acontecer’ na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente falando, não é preciso nada mais, e nada mais pode ser pedido dentro dos limites do razoável, para que este planeta continue sendo um lugar próprio para a vida humana”.
Fonte: ConJur (18/07/2012)